As mudanças da vida e o Yoga
No yoga existe um termo que trata da instabilidade das coisas. Uma hora está calor, na outra está frio, por um tempo gosto de berinjela, depois enjoo. Por anos gosto de alguém, depois tudo muda. Em um momento estou vivo, em outro, morto.
Esse termo é pariṇāma. As coisas mudam o tempo todo, nada é permanente e mesmo aquilo que dura mais tempo, uma hora acaba. Assim se vão pessoas, civilizações, espécies e planetas. Assim surgiu o universo e um dia ele se extinguirá.
A vida é permeada por pariṇāma e mesmo a inegável natureza de transformação da realidade não é suficiente para convencer a mente que acredita que o que um dia foi alcançado, jamais será perdido, seja o que for. Se a pessoa conseguiu perder os quilos extras ela se alegra, quando eles voltam, se entristece – como se não fosse claro que isso provavelmente aconteceria em algum momento da vida.
O modelo de sociedade predominante é o de eterna construção em busca de garantias permanentes. O sistema educacional, o mundo do trabalho, os relacionamentos amorosos, os cuidados com a saúde – sempre em busca de um momento em que os esforços poderão cessar e será então possível aproveitar a permanência e imutabilidade do que foi construído. Até a morte.
Mas infelizmente não é assim e mesmo sabendo disso, continuamos vivendo como se fosse possível enganar o tempo, ludibriar a lógica e fazer algum tipo de acordo com os deuses.
Desde o bebê que quer mamar, passando pela adolescente que quer o celular e não pode ter, até o adulto que se sente aprisionado no trabalho, a vida é frustração constante a todo tempo e cada um de nós vai desenvolvendo meios, à sua maneira, de lidar com isso. De certa maneira essa é a realidade de todos os seres vivos: fugir do que incomoda e ir em direção ao que cada um sente que lhe faz bem – é a planta que busca a luz, a vaca que escolhe a grama que vai comer e a pessoa que compra uma tv que cobre a parede toda da sala.
Sobre esse assunto, o Sāṁkhya, sistema filosófico que fundamenta o yoga, diz o seguinte:
“Do tormento causado pelos três tipos de sofrimento segue o desejo pelo questionamento de quais os meios de eliminá-lo. Se é dito que tal questionamento é supérfluo devido a existência de meios visíveis de eliminar o sofrimento, nós respondemos que não é. Pois nos meios evidentes existe a ausência de certeza e permanência na eliminação do sofrimento.” – Sāṁkhya Karika – verso 1
O verso fala de três tipos de sofrimento, são eles:
- o sofrimento derivado da relação com a natureza como as intempéries, calamidades ou algo como o vírus do COVID, que enfrentamos recentemente;
- o sofrimento que surge na relação com outras pessoas, e esse nem precisa de mais explicações;
- o sofrimento interno como a tristeza, desejos, raiva, medos, ansiedade, depressão ou as neuro divergências.
E diz ainda que, por sofrermos com essas três causas, buscamos formas de dar fim a esse sofrimento, mas nos enganamos usando meios visíveis achando que eles terão potência para eliminar de vez as causas das angústias. Meios visíveis são todas as ações que buscam eliminar o sofrimento através de outras pessoas, objetos ou circunstâncias. Podemos tentar encontrar o fim das angústias através de um amor, uma filha, um professor, uma terapeuta – ou um celular novo, uma casa, uma mudança de emprego, uma viagem, ir na massagem ou uma religião. Esses são todos meios evidentes e circunstanciais, que podem mudar no tempo e que podem sim oferecer alguns conforto temporário, mas não soluções permanentes.
No verso seguinte o Sāṁkhya traz a continuação dessa reflexão:
As escrituras podem ser como os meios evidentes e estarem ligadas à impureza, decadência e excesso. Os meios contrários a ambos e provenientes do conhecimento discriminativo do manifesto, do não manifesto e do conhecedor, são superiores. – Sāṁkhya Karika – verso 2
O primeiro ponto a se olhar nesse verso são os termos “impureza, decadência e excesso” a fim de eliminar qualquer carga moral que esses termos possam parecer carregar.
Impureza
A ação de beber um copo de água tem um resultado totalmente previsível, acabar com a sede. Já quando se trata de autoconhecimento, nem sempre as ações são limpas e puras, nem sempre é possível saber o resultado específico de uma ação pois é difícil estabelecer ações puras com uma clareza de resultados. As ações são coloridas por uma série de interesses diversos misturados de forma que a busca pelo fim do sofrimento através do conhecimento profundo de si, é frequentemente confundida com a construção de um estado de bem estar – e o que é bem estar pode mudar muitas vezes ao longo da vida.
Decadência
Tudo tem prazo de validade, nada é eterno. Um aluno foi passar férias na praia e fizemos seu atendimento durante as férias, online. Ele comentava em tom de brincadeira que queria ficar morando na praia para ter aquela mesma qualidade incrível de experiência todos os dias, mas já sabendo que se tivesse isso todo dia, poderia enjoar e o que era antes uma novidade poderia se tornar monotonia. É claro que alguns lugares são mais saudáveis e agradáveis de se morar, mas o exemplo continua válido. O ponto é que tudo perde validade no tempo, decai, perde força. Nós todos, inequivocamente, vamos ficar doentes, envelhecer e morrer.
Excesso
Com a falta de clareza sobre quais ações levam a um processo real de autoconhecimento, a perda de força e o decaimento de tudo o que é feito, a tendência natural é a dos excessos. Vamos nos tornando cada vez mais apegados, desejando mais, querendo mais, afinal, como enfrentar o poder inexorável do tempo? Acumulamos bens de consumo, viagens, experiências, estudos, filosofias, religiões.
A segunda frase, ainda do verso dois, diz que “Os meios contrários a ambos e provenientes do conhecimento discriminativo do manifesto, do não manifesto e do conhecedor, são superiores.” – apontando que há uma solução, já que nos meios evidentes temos claro que não há solução alguma. Aqui o Sāṁkhya no apresenta o “conhecimento discriminativo do manifesto, do não manifesto e do conhecedor”, deixando implícito que será necessário um mergulho em si apoiado nos estudos com a orientação de um professor; um processo analítico, reflexivo; e principalmente a experiência meditativa do que é ensinado, afinal, o que é o manifesto, o imanifesto e o conhecedor?
Essas três instâncias tratam de tudo o que cada um de nós é. Grosso modo, existe uma porção conhecida como o corpo, alguns pensamentos e emoções, uma porção desconhecida, inacessível sem um treinamento correto e há algo que experiencia tudo isso. O que estamos chamando aqui de centro. Entender o que é cada uma dessas três partes é a direção final da solução das angústias provenientes das mudanças. Vejamos mais a seguir.
A angustiante busca pela estabilidade
Observe os seguintes versos do Yogasūtra, o principal texto do yoga:
“Yoga é a habilidade em voltar a mente exclusivamente em direção a um objeto e sustentar essa direção sem quaisquer distrações.” – Yogasūtra – 1.2
“Então, a habilidade de compreender o objeto plena e corretamente se manifesta.” – Yogasūtra – 1.3
“[Quando a pessoa não está em estado de yoga] A habilidade de compreender o objeto é simplesmente substituída pela percepção mental desse objeto ou por uma total falta de compreensão.” – Yogasūtra – 1.4
Um objeto é tudo aquilo sobre o qual se coloca a atenção e pode ser também um conceito, uma ideia, uma emoção, uma lembrança. Portanto, quando há yoga, esse objeto pode ser compreendido, quando não, a mente usará experiências passadas que de alguma forma se assemelham a esse objeto para formar uma compreensão do que se quer entender. É normal e necessário que essa sobreposição de um conceito previamente estabelecido sobre objetos do cotidiano aconteça, afinal muitos momentos do cotidiano precisam de automatismos para acontecerem, como dirigir ou executar tarefas repetitivas. No entanto, há tantos outros em que é necessário cuidado e atenção. Quando a mente não é treinada a se deter com calma em momentos como esses, tudo o que ela fará será vṛtti sārūpyam, ou seja, ela criará um cópia interna distorcida da realidade e se vinculará a realidade a partir dessa cópia. Ela perde o frescor de uma percepção nova sobre algo e se estabelece em “pré-conceitos”.
E se o próprio eu for o objeto? Quando soubemos de fato o que é esse eu? Quando éramos crianças não sabíamos. O que tínhamos à mão era um corpo com suas necessidades e desejos e aquilo que todas as outras pessoas nos diziam sobre o mundo e sobre nós. Crescemos e fomos nos relacionando com o mundo a partir de informações incertas e imprecisas sobre nossa própria existência!
Essa distorção causa a perda de um centro a partir de onde as experiências poderiam ser percebidas e sem um centro a vida é percebida a cada momento de uma maneira diferente de acordo com os humores predominantes dentro de uma miríade de possibilidades – muitas, coloridas pela frustração. O ponto aqui é que mesmo a noção de eu não é um centro, é móvel e se transforma no tempo.
O que temos é que se olharmos com atenção e cuidado, perceberemos um enorme potencial na própria realidade, e na forma como nos relacionamos com ela, em criar ainda mais confusão e sofrimento. O Yogasūtra, em uma análise meticulosa, estabelece que há fundamentalmente quatro causas para que isso aconteça. É importante notar que são quatro, não trinta ou dez, logo cada uma delas requer uma boa dose de reflexão:
pariṇāma: a eterna transformação da realidade e como já vimos no começo do texto, as mudanças podem gerar muita angústia.
tāpa: é o arrependimento pelo que fizemos e gostaríamos de não ter feito e pelo que não fizemos e gostaríamos de ter feito.
saṁskāra: trata das angústias que surgem por hábitos adquiridos que nos levam a comportamentos mecânicos irrefletidos e condicionamentos estereotipados. Aqui também entram os vícios.
guṇa vṛtti virodhāt: a instabilidade das emoções, como já comentado acima.
Então, que fazer?
A única forma de lidar melhor com as mudanças da vida com clareza sem cair nas mesmas confusões é saindo do meio delas em busca do seu próprio centro. É importante que fique claro que eu e você não alcançaremos o centro, isso é algo muito distante e profundo, mas todo passo dado em sua direção, é um passo mais longe da confusão e para isso é preciso melhorar a mente e mudar sua tendência à dispersão fortalecendo suas qualidades de atenção.
“A mente é capaz de dois estados, baseados em duas tendências distintas: a distração e a atenção. No entanto, num dado momento, apenas um prevalece, e esse estado influencia o comportamento, as atitudes e as formas de expressão da pessoa.” – Yogasūtra – 3.9
A atenção leva a mente a se situar em um local de estabilidade que permite uma contemplação mais clara das modificações da realidade. O exemplo que se usa tradicionalmente é o de uma roda de carroça. Quanto mais próximo do centro, menos movimento interno e mais fácil de contemplar todos os movimentos externos dos raios e do aro.
Em outro trecho do Yogasūtra o autor diz:
“Uma mente pacífica resulta de um estado mental de amizade frente aqueles que estão felizes, de compaixão com os que estão sofrendo, de alegria pelos que fazem coisas louváveis e de equanimidade frente aos erros dos outros.” – Yogasūtra – 1.33
Esse não é um estado mental simples de se alcançar, mas qualquer resultado nessa direção representa um grande ganho e alguns quilos a menos para carregarmos sobre as costas no cotidiano.
O que é o Centro?
Como já disse o gato da Alice: “para quem não sabe para onde vai, qualquer caminho serve”.
Vimos acima que o Sāṁkhya indica que as ações do cotidiano que buscam o fim do sofrimento em pessoas, objetos e circunstâncias então vinculadas a impureza, decadência e excesso e que o conhecimento discriminativo do manifesto, do imanifesto e do conhecedor é superior na eliminação definitiva do sofrimento. Vimos também que, grosso modo, o manifesto é tudo o que percebemos sobre nós, o imanifesto é o que não percebemos e que o conhecedor é o centro.
Quando percebemos algo, qualquer coisa, essas três instâncias estão juntas percebendo, sentindo, observando esse algo. Conseguir discriminar o que é cada uma dessas partes que percebe é o ponto final, o ponto de chegada mas que aponta um caminho que precisará de discriminação durante todo o trajeto, ou seja, você precisará entender o que acontece com você na relação com os mais diferentes objetos a serem percebidos na vida.
Vou dar alguns exemplos iniciais.
Algumas pessoas costumam dizer que quando está chovendo o clima está ruim e quando não está, o clima está bom. O clima é o clima e pronto, a percepção de bom ou ruim é sua.
Às vezes, conversando com alguém a pessoa pode não te entender e você poderá dizer a ela: “você não está me entendendo”, quando poderia dizer, “desculpe, não estou sendo claro, deixe-me tentar ser mais claro”.
Você pode desejar muito que algo aconteça e quando não acontece, a frustração pode ser dilacerante. Frustrado, você acaba colocando a culpa em qualquer outra coisa que não você, que criou expectativas demais com a realidade.
Agora, se aprofundarmos um pouco mais essas reflexões, poderíamos nos perguntar:
Meu corpo é realmente meu? Eu consigo controlar os batimentos do meu coração, ou a quantidade de gordura que meu corpo absorve? Consigo controlar facilmente o que quero comer e o que não quero? E meus pensamentos, do que eles são feitos? E minhas emoções? Há realmente uma separação entre pensamentos e emoções? E meus afetos e medos, consigo lidar com eles com facilidade? Ou ainda, de onde vem o desejo em mim, e o medo? Consigo lidar com perdas como a morte?
Se não nos fizermos essas perguntas, se não buscarmos respostas para elas, seremos reféns de respostas que nem sabemos quais são. Pior, muitas vezes nem sabemos quais são as perguntas!
O Yoga oferece respostas para todas essas perguntas e ainda oferece um mapa de como encontrá-las e mais, muito além de respostas técnicas, intelectuais, oferece o caminho de como experienciá-las. Para mentes mais céticas isso pode parecer absurdo mas é importante lembrar que o Yoga está estudando a mente há muito mais tempo que o ocidente e que há tratados muito completos e técnicos com mais de 2.500 anos.
O que podemos compreender dentro dessa lógica é que se tudo o que não entendemos com clareza em nós pode ser entendido em algum momento, é que esse observador existe anteriormente a todas as perguntas e todas as respostas e se ainda não compreendemos essa realidade interna é porque ainda não nos detivemos em tentar compreendê-la.
Logo, o caminho proposto pelo Yoga é que para entender profundamente o que é esse observador, esse centro (que é anterior a tudo em nós), será necessário entender tudo o que se coloca à sua frente, ou seja, tudo aquilo o que somos. O grande benefício disso é que mesmo não compreendendo claramente esse centro, todo passo dado em sua direção é um passo que leva a maior compreensão sobre si mesmo, reduzindo muito as chances de cairmos nas mesmas confusões de sempre.
Um erro comum
Sempre que se fala em centro, a primeira compreensão é a de centro entre dois pontos equidistantes, um centro de equilíbrio, como o eixo de uma gangorra. Lembre do exemplo da roda da carroça, ou melhor, pense no centro de uma esfera. Tudo que acontece ao redor são as diversas manifestações do que você é: as coisas com as quais você se identifica; as que você gosta; as que não gosta; suas inseguranças; as coisas nas quais você é bom; ou as em que têm dificuldades; as coisas que você ignora; sua busca por liberdade; ou as coisas que te aprisionam. Tudo está ao redor do centro pois tudo isso gera algum tipo de apego que te mantém fixo em algo e impede um aprofundamento em direção ao centro e se te mantém apegado, vai te causa sofrimento devido a pariṇāma.
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Tirei a foto que ilustra esse post em Varanasi, a cidade mais antiga da Índia e uma das mais antigas do mundo ainda existente. Essa senhora trabalha lidando com a lenha que será usada na cremação dos mortos que terão suas cinzas lançadas ao Ganges. Essa foto é muito importante para mim por seu contexto e também devido às profundas transformações pelas quais passei em minha única ida à Índia até agora. Que todos os deuses possam me abençoar para que eu possa voltar.
Conheci vc num podcast sobre o Livro O Coração do Yoga! Gostei! Parabéns pelo seu desprendimento em compartilhar um texto tão enriquecedor!