Os padrões e as qualidades da mente

Por Publicado em: 24/07/202512,5 minutos de leitura

Seu corpo e o meu são mais parecidos do que diferentes.

Eu e você temos uma estrutura óssea que sustenta o corpo. Temos músculos e tendões que amarram os ossos juntos e permitem a mobilidade. Temos também um sistema respiratório, digestório, circulatório, endócrino, temos um saco que mantém tudo isso junto (a pele), temos os sentidos da audição, visão, tato, paladar e olfato. Existem algumas diferenças, mas existem muito mais similaridades.

A partir dessa estrutura básica comum a todo ser humano, existem as diferenças que dão a cada corpo, uma aparência e funcionamento único.

Da mesma forma é a mente. Existe uma estrutura fundamental, que é idêntica para todos os seres humanos, e existem características únicas que se apoiam sobre essa estrutura.

Veremos sobre a estrutura da mente em outra oportunidade. Aqui nos deteremos sobre o que se apoia sobre a estrutura da mente, os saṃskāras.

A primeira explicação é a de que os saṃskāras são os padrões da mente.

Para o Yoga, toda ação, pensamento ou emoção vem de algum padrão, mesmo que não o reconheçamos. O idioma que você fala é um saṃskāra, os hábitos culturais são saṃskāras, a raiva, o medo, a amizade, a compaixão, o amor – são saṃskāras.

Quando nascemos, ignoramos por completo a realidade ao nosso redor, e ainda, o que é estar vivo. Mesmo funções vitais básicas como comer ou o controle do esfíncter para evacuação tiveram que ser aprendidas. Na convivência com os outros moradores da casa onde crescemos, aprendemos a sentar, engatinhar, andar, falar, comer e o que devemos e o que não devemos fazer. Todo o processo educacional é criação de saṃskāras. Quando começamos a estudar algo como tocar violão, o aprendizado é a criação de novos saṃskāras que antes não existiam.

Para o Yoga, a mente é totalmente plástica e moldável podendo ser transformada em qualquer direção que desejarmos, mas claro, algumas mudanças são mais fáceis do que outras. Algumas mudanças, como a capacidade de não ser arrastado pela mente a todo instante, pode levar muitos anos.

A criação de um saṃskāra pode ser compreendida como a criação de uma nova rota que não existia anteriormente. É como passar todos os dias por um campo de mata fechada e com a repetição da caminhada, sempre pelos mesmos lugares, criar uma trilha. Se a repetição se sustentar por muito tempo, pode chegar ao ponto de o caminho se tornar somente um chão de terra batida. Quando isso acontece, o saṃskāra pode dar origem a criação de um vāsanā, uma impressão mental profunda que poderá ser mudada se necessário, mas com muita dedicação e tempo.

No exemplo acima, da pessoa que estuda violão, aprender a tocar é criar um saṃskāra. Quando ela se reconhece como um músico, quando sente falta de tocar, quando aquilo se estabeleceu de tal forma que passa realmente a fazer parte da vida dessa pessoa, de suas escolhas e da forma como ela se reconhece, então um vāsanā foi criado.

Os vāsanās habitam a dimensão mais profunda da mente e assim como os saṃskāras, quando sustentados por um longo tempo podem criar vāsanās – os vāsanās já criados na mente, podem direcionar a criação de novos saṃskāras. Dentro do mesmo exemplo, quando o vāsanā da música se estabelece através do estudo do violão, facilita a criação de outros saṃskāras, como o de aprender a tocar guitarra, baixo, teclado, bateria ou aprender a cantar.

Tanto os saṃskāras quanto os vāsanās não nos afetam todos de uma mesma maneira, eles tem qualidades específicas que direcionam seu funcionamento e a forma como afetam a mente e as emoções. Essas qualidades são chamadas, guṇas.

Os guṇas

Para o Yoga, existem três qualidades fundamentais da mente (guṇas) sobre as quais os saṃskāras e vāsanās se estabelecem, e são chamadas de sattva, rajas e tamas.

Qualquer raciocínio, pensamento, emoção ou sentimento é formado por combinações dos três guṇas em intensidades diferentes mas sempre com um dos três em predominância.

De forma bastante introdutória, poderíamos dizer que atributos como letargia, preguiça, confusão, falta de clareza, contenção, dificuldade de pensar ou se conectar com alguma emoção, são produtos de tamas. A angústia, ansiedade, incômodo, o sofrimento, agitação e ação, são produtos de rajas. Já o bem estar, o conforto, prazer, clareza, lucidez, são produtos de sattva.

Os guṇas funcionam na mente de duas maneiras: quando estamos com a atenção voltada muito para fora e quando estamos com a atenção voltada mais para dentro.

Estar com a atenção voltada mais para fora quer dizer estar voltado mais para os afazeres totalmente práticos do cotidiano de forma automática, sem reflexão ou atenção.

Estar voltado mais para dentro quer dizer separar tempo no cotidiano para algum processo introspectivo como a prática de yoga (posturas, respirações, canto e meditação), para leitura, a prática de alguma atividade artística, se relacionar com a natureza – e também desempenhar as atividades básicas do cotidiano com atenção e sensibilidade.

Quando a atenção está voltada para fora, os guṇas funcionam em sua natureza (atma), ou seja a mente desatenta se relaciona com o mundo de forma confusa, superficial e sem clareza – o que produz um incômodo geral de fundo que leva a pessoa a buscar algo que aplaque esse incômodo. Como conhecemos o prazer e a dor que o corpo sente, o incômodo acaba sendo relacionado a dor e o prazer, sua cura. Quanto maior a sensação do incômodo, maior será a busca por prazer. Quanto mais agudo for o incômodo, maior será a busca por prazeres intensos e rápidos.

Então, quando a atenção (desatenta) voltada para fora, tamas traz a qualidade da confusão de fundo gerada pela desatenção; rajas, são as ações angustiadas por prazer a todo custo e sattva é o prazer temporário alcançado. O prazer, custe o que custar, parece ser a meta última da humanidade, já que estamos destruindo o planeta todo e a nós mesmos nessa busca.

Já quando a atenção está voltada mais para dentro, a realidade é outra completamente diferente e os guṇas funcionam em seu propósito (artha) de gerar clareza e lucidez.

Voltar a atenção para dentro é também olhar para o cotidiano com atenção. É necessário refletir sobre a própria vida, sobre as escolhas, sobre a rotina, sobre os horários, o sono, a alimentação, o estudo, a busca por entretenimento, diversão, cuidados com a saúde. Todos os campos da vida deverão ser olhados com atenção, pois tudo nos influencia de alguma maneira. É preciso olhar para as próprias emoções e para os relacionamentos. Ao fazer isso, a pessoa começa a se reconhecer, a compreender seus “contornos”, compreender do que ela é feita. Aquilo que antes era um mistério completo, começa a ser compreendido. Nesse sentido, o incômodo geral de fundo passa a ser substituído por um sensação interna de estabilidade e firmeza, uma sensação de propósito. Dessa sensação interna surgem ações mais voltadas para uma relação lúcida, sensível e atenta com o outro e com o mundo.

Então, com a atenção voltada para dentro, tamas trata da sensação interna de estabilidade; rajas se refere às ações atentas e conscientes e sattva à clareza e lucidez presentes na ação.

A parábola da Lamparina

Para facilitar a compreensão desse tema, o Sāṁkhya Kārikā nos apresenta a parábola da lamparina, no verso 13:

“Sattva é laghu (leve), prakāśa (iluminação). Rajas é calam (móvel), upaṣṭambhakaṁ (estimulante, excitante). Tamas é guru (pesado) e varaṇakam (restritivo). Os três funcionam para um único propósito como os vários elementos de uma lamparina.”

Uma lamparina só é, de fato, lamparina, quando está cumprindo sua função, quando está acesa, iluminando – caso contrário ela poderia ser um objeto de decoração ou um porta moedas, por exemplo.

Para que a lamparina possa iluminar, é necessário que o óleo, que é líquido, esteja contido dentro de uma recipiente, no óleo é mergulhado um pavio que é então aceso. O óleo é tamas, o fogo no pavio, rajas e a luminosidade, sattva. Tamas não age, simplesmente oferece o combustível que será queimado por rajas, que age. Assim como tamas, sattva também não age e sua luz surge como efeito da ação de queima do pavio.

Os guṇas, os saṃskāras e a mente

Como pudemos ver acima, cada saṃskāra terá uma composição específica de guṇas, em sua natureza ou em seu propósito.

Quando a mente está desatenta, entretida com os acontecimentos do entorno e voltada mais para fora, saṃskāras de engano, confusão, incômodo e forte busca por prazeres rápidos virão a tona – vyutthāna saṃskāras. Já quando a mente está mais sensibilizada e voltada para a contemplação da realidade interna, saṃskāras de estabilidade, assertividade, objetividade, clareza, virão à tona – nirodha saṃskāras.

“Vyutthāna acontece devido a Rāga (apego). Nirodha acontece devido a Vairāgya (desapego).” – T. Krishnamacharya

Assim como o propósito da lamparina é iluminar, o propósito da mente é conhecer. Quando conhecemos algo, a mente está cumprindo seu propósito em alguma medida. Mas é quando ela conhece aquilo que conhece tudo, ou seja, ela mesma, é que de fato cumpre por completo seu propósito.

Para que se possa refletir sobre como o propósito da mente é conhecer, é necessário primeiro observar os seguintes tópicos:

  • É impossível não agir. Ficar deitado na cama é também uma ação, uma escolha;
  • Minhas ações geram resultados agradáveis e desagradáveis;
  • Algumas ações que trazem uma sensação agradável não me fazem bem, outras que me trazem uma sensação desagradável, podem fazer bem;
  • Nem sempre é fácil discernir entre o que é bom e faz bem, o que é bom e faz mal, o que é ruim e faz mal e o que é ruim e faz bem;
  • Ações feitas agora podem trazer resultados imediatos ou em um futuro imprevisível;
  • Não importa a qualidade da ação, ela sempre surge internamente e depois se manifesta externamente;
  • Mudanças podem trazer sofrimento na medida em que se perde o que se deseja ou se é afetado por aquilo que não se deseja;
  • O arrependimento sobre o que fizemos e o que não fizemos ou o desejo por repetir experiências passadas geram sofrimento;
  • O funcionamento mecânico dos condicionamentos e vícios também tem um enorme potencial de gerar sofrimento;
  • A instabilidade emocional com mudanças desordenadas que humor que nos pegam de surpresa também é um grande fator causador de sofrimento.

O desconhecimento ou a falta de reflexão sobre os tópicos acima transforma a própria realidade interna em um mistério completo. Como é impossível interagir com o mundo de outra maneira que não a partir de si mesmo, a partir da própria mente, das próprias emoções, desconhecer essa realidade é aumentar dramaticamente as chances de angústias e sofrimento.

Por outro lado, a mente não está totalmente cativa da própria confusão, ela pode mudar para outra direção e o que atesta isso é que estamos mudando desde que nascemos, mas na maior parte das vezes, não em uma direção escolhida.

Assim como a relação com o mundo pode ser de angústia devido ao desconhecimento da própria mente, pode ser também de cada vez mais liberdade na medida em que passamos a entender sua lógica de funcionamento através dos guṇas e saṃskāras. E, assim como a mente pode criar saṃskāras de desatenção e confusão quando voltada para fora, pode criar saṃskāras de atenção e sensibilidade quando voltada para dentro.

Diferente da criação compulsória de saṃskāras na vida, a criação consciente de saṃskāras requer a orientação correta, atenção, cuidado e planejamento.

“A mente é amiga daquele que a conquistou. Mas, para quem não tem controle sobre a mente, ela permanece hostil, como um inimigo.” – Bhagavad Gīta – 6.6

Como já deve estar claro para você nessa altura, nem sempre será fácil mudar e na maior parte das vezes será necessário muita confiança no processo, dedicação, comprometimento por um longo prazo e o treinamento da habilidade de contemplar a própria realidade interna.

Reconhecendo essa dificuldade e complexidade, o Yoga, com os pés muito firmes no chão, entende que para que esse processo de mudança surta algum resultado, será necessário se valer de todos os recursos possíveis com a orientação correta para se reduzir as chances de confusões, ou seja, a pessoa terá que ter um professor individual. Com o professor serão explorados aspectos da vida prática como sono, rotina, alimentação, relações afetivas, trabalho, estudo, etc. O aluno estudará os textos do Yoga a fim de entender cuidadosamente o sistema para que isso auxilie em sua autonomia e por fim, se valerá de técnicas corporais, respiratórias, canto e meditação que fortalecem o aprofundamento na própria mente.

A vida é uma só. Se queremos aumentar as chances de vivermos bem, que possamos fazer isso com cuidado e dedicação.

________________________________________

Imagens presentes nesse post:

Foto de Kira auf der Heide na Unsplash

Foto de Susie Burleson na Unsplash

Foto de The Cleveland Museum of Art na Unsplash

Foto de Lara Jameson: https://www.pexels.com/pt-br/foto/vela-lamparina-chama-labareda-8887246/

Deixe seu comentário

Gostou do conteúdo? Compartilhe com outras pessoas.