O que é o Yoga Sūtra de Patañjali
O Yoga Sūtra é o principal texto do yoga e sistematiza esse conhecimento. Como os indianos tinham pouquíssima ou nenhuma preocupação com a datação histórica na produção de conhecimento, é um tanto difícil precisar quando esse texto foi escrito. Através do estudo comparado do estilo de linguagem, acredita-se que sua produção tenha se dado entre os séculos 5 e 3 antes de Cristo.
Considerado até os dias atuais o mais importante, profundo e conciso tratado sobre a mente humana, nos traz a compreensão de que muito além das posturas físicas, a prática correta de Yoga é capaz de transformar incrivelmente o funcionamento da mente possibilitando uma vida em maior harmonia com os outros e com nós mesmos, nos direcionando para um caminho de uma profunda busca interna.
Yoga é um dos seis sistemas de pensamento indiano conhecidos como darśana. Os outros cinco são: nyāya, vaiśeṣika, sāṃkhya, mīmāṃsā e vedānta. A palavra darśana é derivada da raiz, em sânscrito, dṛś, “ver”. Darśana, portanto, significa “visão”, “ponto de vista” ou até “um certo modo de ver”. Mas, além desses, existe outro significado, para entendê-lo, precisamos evocar a imagem de um espelho com o qual podemos olhar para dentro de nós mesmos. E, de fato, todos os grandes textos apresentam-nos maneiras de ver que criam oportunidades de nos conhecermos melhor. Olhamos mais profundamente dentro de nós mesmos à medida que aprendemos a aceitar os ensinamentos.
O yoga tem sua origem nos Vedas, o mais antigo registro da cultura indiana e foi sistematizado como um darśana especial pelo grande sábio indiano Patañjali, no Yoga Sūtra. Embora a este trabalho tenham se seguido muitos outros importantes textos sobre yoga, o Yoga Sūtra de Patañjali é certamente o mais significativo.
Sabe-se muito pouco sobre Patañjali e muito do que se sabe é permeado por mistério e histórias fantásticas, mas o que se pode afirmar é que Patañjali foi um grande intelectual em sua época, um gramático, médico e yogi indiano que escreveu tratados nessas três áreas sendo o Yoga Sūtra, sua obra mais significante.
Em seu texto, Patañjali deixa claro que Yoga é um sistema aberto a todos: hindus, não hindus, religiosos, espiritualistas, agnósticos ou ateístas, independente das convicções pessoais, todos poderão colher bons frutos, cada um a seu tempo, da árvore do Yoga. Ao praticante sincero, o Yoga será ao mesmo tempo rigoroso, tolerante, e acessível.
O texto foi escrito em forma de Sūtra, uma palavra em sânscrito que quer dizer “aforismo” ou “fio” e, de uma forma precisamente organizada, de sūtra a sūtra, seguindo esse fio em um fluxo de conhecimento limpo, Patañjali nos leva a compreender a amplidão do que é Yoga. Entender o que são “Sūtras” nos ajuda a entender mais claramente a complexidade do Yoga.
Classicamente na Índia, um sūtra precisa se ater rigorosamente as seguintes diretrizes:
Alpākṣaram – poucas letras, ou poucas frases. Um Sūtra deve ser conciso. O Yoga Sūtra é composto por somente 195 frases e algumas tem apenas 3 palavras mas que contém um vasto ensinamento.
Asandigdham – não-ambiguidade. Os Sūtras requerem precisão. Quando Patañjali introduz um novo tópico, vai direto ao ponto com o menor número possível de palavras.
Sāravat – completamente preenchido de significado. Patañjali traz a essência do ensinamento escolhendo cada palavra cuidadosamente de forma que quanto mais refletimos sobre um Sūtra, mas ele se revela para nós em camadas e camadas de informação.
Siśuato mukham – para a diversidade do mundo. O ensinamento de yoga pode ser usado em qualquer lugar do mundo e em qualquer época. O Yoga Sūtra trata de uma mensagem universal que pode ser apreendida por qualquer pessoa.
Astobhyam – As coisas como são. Patañjali não trata de teorias abstratas e intangíveis, mas somente de fatos experienciados e verificados por yogis durante muitas e muitas gerações.
Anavadyam – tratado com dignidade, sem fanfarronice. Técnicas ou palavras vulgares não são usadas. O ensinamento é transmitido com elegância e respeito pelo aluno.
O Yoga Sūtra é dividido em 4 capítulos:
1 – Samādhi-pādaḥ – é voltado ao aluno que possui mente estável capaz de se focar em um objeto sem se distrair. Trata da definição de yoga, da mente, dos diferentes níveis e formas de meditação e de termos fundamentais no Yoga como abhyāsa (a prática de yoga), vairāgya (a capacidade de soltar o que não é mais necessário), śraddhā (a confiança necessária para seguir a caminhada) e antarāya (os obstáculos no caminho).
2 – Sādhana-pādaḥ – voltado a grande maioria de estudantes. Trata do caminho do yoga e da prática frequente e nos esclarece que o sofrimento que ainda não ocorreu deve ser evitado. Quando não conseguimos evitar situações que nos tiram de nossa centralidade e nos causam desconforto e sofrimento, devemos estar preparados. O sintoma desse descontrole (heya) é o sofrimento (duḥkha) que deve ser evitado. A causa (hetu) é a ignorância (avidyā), fonte das aflições (kleśas). Interromper esse ciclo é o objetivo (hāna). E o meio (upāya), é o Yoga.
3 – Vibhūti-pādaḥ – apresenta os resultados reais da prática de yoga, que vão muito além das posturas físicas e que envolve concentração (dhāraṇā), meditação (dhyāna) e o relacionamento profundo e completo com o objeto de meditação (samādhi).
4 – Kaivalya-pādaḥ – compara o yoga com outros sistemas clássicos de filosofia indiana e esclarece como o yoga pode ser de grande utilidade. Esclarece as mudanças profundas que podem ocorrer na mente do praticante e como essa mente, mais lúcida e serena pode influenciar outras mentes positivamente. Trata da realidade dos objetos percebidos e da forma como os percebemos, ou seja, as coisas ao nosso redor existem independente do observador e, se diferentes pessoas têm diferentes impressões de um mesmo objeto, isso se dá somente pela forma como a mente de cada indivíduo lê o mesmo objeto.
O quarto capítulo conclui o texto descrevendo a mente que se desenvolve em direção a um estado de clareza e total independência de condicionamentos e aflições.
Um processo contínuo de estudos
O Yoga Sūtra é, ou deveria ser o fundamento, a estrutura de qualquer prática de yoga. É dele que parte toda a compreensão do yoga, do indivíduo e da mente e é dessa compreensão que surge o caminho, a prática de yoga.
O texto trata das posturas de yoga (āsanas), das técnicas de respiração (prāṇayāma) e meditação (dhyānam) e também traz ensinamentos sobre não-violência (ahiṁsā), ser verdadeiro (satya), amizade (maitrī), compaixão (karuṇā), sobre nossas angústias e sofrimento (duḥkha) e meios para reduzi-los – entre tantos outros temas riquíssimos. É justo anunciar que uma prática de yoga que não se ancora no Yoga Sūtra pouquíssimo ou nada tem de Yoga.
Devido a forma sintética de escrita dos Sūtras, o Yoga Sūtra não pode ser compreendido em toda sua profundidade e beleza somente a partir do estudo em livros – é imprescindível a presença de um professor que tenha compreendido minimamente o significado do texto através do estudo com seu professor em um relacionamento longo e consistente onde o professor busca elucidar conceitos que simplesmente não podem ser acessados somente com o auxílio de um dicionário ou com a pesquisa em outros textos. Compreender claramente termos centrais no Yoga Sūtra como Purusa e Prakrti, pede a compreensão prévia e experiencial de muito outros conceitos como o funcionamento dos sentidos, da realidade e como a percebemos, das diversas camadas da mente e como nos relacionamos com ela.
Já no primeiro Sūtra, do primeiro capítulo pode-se perceber a dificuldade do estudo sem acompanhamento em direção às diferentes camadas de compreensão do texto:
atha – agora(começa); usada no início (de trabalhos), principalmente como um sinal de auspiciosidade.
yoga – o ato de unir, juntar, anexar, engatar
anu – seguir, um após o outro
śāsana – ensinamentos; doutrina; instrução, disciplina; ensino, instrução, um instrutor
“Agora começa o ensino [autorizado] de yoga.”
A chave aqui é a palavra anuśasānam. Ela expressa claramente a ideia de que a instrução transmitida tem autoridade e foi experienciada ao longo de gerações de professores a alunos. Anuśasānam conecta o professor de agora a seu professor e o coloca em posição de aluno remetendo a uma longínqua corrente de professores responsáveis com a transmissão do ensinamento e que tem a compaixão e a preocupação com o aluno como sua motivação por ensinar.
Em outra camada de compreensão do mesmo Sūtra, o professor Desikachar dizia que a palavra atha representa o aluno, que se coloca pronto e disposto a aprender; anuśasānam é o professor, que traz dentro de si a tradição de yoga e a palavra yoga, é o que faz a união, o elo entre os dois quando se cria um relacionamento sincero de estudo e aprendizado.
Estudar o Yoga Sūtra não é uma tarefa com um fim, é algo para a vida toda. O texto reflete a complexidade e beleza da mente humana e se desdobra e revela novos conhecimentos a cada vez que nos debruçamos sobre ele. Quanto mais compreendemos o texto, mais compreendemos a nós mesmos.