A Consciência, a Mente, e a Espiritualidade
Yoga é autoconhecimento. Mas como o Yoga entende essa disciplina do conhecer a si mesmo?
Como diz o professor Desikachar, “comece de onde você está”. E onde estamos é o paradigma que herdamos do pensamento Europeu e Norte Americano, quer tenhamos clareza disso, quer não. O que estudamos na escola são as descobertas feitas por pessoas dessas regiões do planeta e mesmo quando estudamos algo que seja próprio do pensamento sulamericano, ou ainda, do pensamento brasileiro, esse sofre fortes influências do paradigma dominante. Ou seja, o nosso pensar não é autêntico, puro individual, imaculado, muito pelo contrário, pensamos a partir das cabeças de outros que já pensaram muitas coisas antes de nós e as entregaram prontas para que somente as assumissemos para nós como verdade. Isso faz parte do processo civilizacional e não tem como ser diferente. É justamente o fato de outros terem pensado, tido ideias, construído objetos, conceitos, sistemas antes de nós, que nos permite termos a chance de vivermos em coletividade e assim, aliviarmos o esforço individual.
Para a psicologia ocidental (entenda-se Europa e América do Norte), a consciência é produto da mente e é compreendida como mais uma de suas funções que se desenvolve na medida em que a pessoa se relaciona com o mundo.
Já para o Yoga é exatamente o oposto: a consciência já é pré-existente como um recurso fundamental do ser, existe à parte da mente e olha para a realidade através dela. Já voltaremos a esse ponto, por enquanto é importante entender o que é a mente nessa perspectiva.
Para o Yoga, mente e cérebro não são a mesma coisa. O cérebro é parte do corpo e coordena todo o sistema nervoso e as funções orgânicas e está submetido à mente, que por sua vez é maior do que o cérebro, e é o aglomerado de todas as experiências que tivemos na vida, sejam elas puramente físicas, como a criança aprendendo a andar, sejam elas puramente mentais, como os sonhos.
Se a mente não é o cérebro, onde ela está?
A consciência está fora do cérebro e fora da mente e podemos dizer que é maior do que ambos. E onde está a mente ou onde está a consciência? Eu poderia responder com outra pergunta: onde está o amor? Quando amamos alguém, amamos como? A partir de onde? Responder que amamos com o cérebro não pode ser uma resposta aceitável pois todo mundo que já amou, não sentiu isso no cérebro. Por mais que uma resposta biológica que envolva o sistema nervoso e endócrino seja possível, ela não trata da dimensão experiencial da emoção, e para o Yoga, é isso que importa.
Artistas, filósofos e poetas têm tentado entender o amor há séculos sem nunca esgotar o tema. Precisaremos também, assim como a arte ao lidar com o amor, nos deter longamente em um estudo sobre a mente para que tenhamos alguma chance de entendê-la.
É possível pensarmos em várias imagens sobre a forma como o Yoga organiza o conhecimento sobre o indivíduo. A maneira mais simplificada e objetiva é a seguinte: a consciência observa a realidade através da mente e do corpo.
Mas é possível explicar isso de outra maneira.
Uma pessoa deprimida, agitada, desejosa ou medrosa, por exemplo, é afetada por essas emoções de tal forma que o julgamento do que está acontecendo fora e dentro fica prejudicado. Ao mesmo tempo, independente das emoções presentes na mente, a consciência existe em seu estado plenamente manifesto, completamente lúcida, porém, obstaculizada pelas emoções e pensamentos desordenados.
A pessoa enraivecida, enxerga o mundo com as cores da raiva ela vê, mas vê tudo colorido pela raiva. A capacidade de “ver” o mundo é conferida pela consciência, a raiva, pela mente. Nesse sentido, a clareza da consciência em enxergar a realidade é distorcida pela confusão da raiva. A mesma lógica se aplica a todas as emoções. Mas antes que se pense em alguma forma de distinção entre razão e emoção, cabe um alerta.
Segundo o Yoga, todo pensamento tem uma base emocional e mesmo quando acreditamos que estamos sendo puramente racionais, existe alguma emoção por trás, como, por exemplo, o desejo de se mostrar conhecedor de algum assunto, ou se sentir superior a alguém, ou ainda, o desejo de provar a verdade!
Faz mais sentido pensarmos que algumas emoções induzem a pensamentos limitantes e outras a pensamentos mais expansivos. Algumas emoções me levam a olhar somente para as minhas necessidades, outras me levam a considerar o outro, o todo. O egoísmo limita a minha forma de pensar, o altruísmo expande o pensar.
O sofrimento e a alegria
Há em nós um tremendo potencial interno para o sofrimento. Ser um indivíduo tão frágil em uma realidade tão ameaçadora, provoca-nos uma miríade de dores. A gente se incomoda com as mudanças, com nossos vícios, arrependimentos e mudanças de humor. Isso tudo é verdade. Mas tem um outro lado que precisa ser olhado também.
O Yoga propõe que a solução para essas diversas dores, angústias e sofrimentos da vida vem do cultivo de emoções opostas a essas, que trazem uma relação menos egocêntrica e mais compassiva com a vida pois é justamente uma forte noção de eu que intensifica a sensação de sofrimento. Claro que algumas pessoas têm uma vida realmente muito mais difícil do que outras. Uma mãe solteira, com três filhos, trabalhando como diarista e morando na periferia, certamente enfrenta uma carga muito pesada. Mas mesmo assim, aquilo que não pode ser mudado, será menos difícil de ser enfrentado com Yoga.
A lógica proposta é a seguinte. O que passou não pode ser mudado. A mente pode alternar entre três qualidades básicas gerais: clareza, agitação e letargia. Usaremos os recursos que pudermos para aumentar a qualidade de clareza. Com mais clareza, fica mais fácil olhar para os enganos do passado e as ansiedades do presente. Constrói-se clareza estudando e meditando sobre os textos do Yoga e aplicando esse conhecimento à vida.
A clareza é apontada para a Consciência, que por sua vez, está escondida no meio de tantos outros pensamentos e emoções. Para encontrá-la no meio dessa confusão, é necessário criar emoções de maior expansão, abertura, que nos permitam olhar tudo aquilo que é grandioso.
Observe alguns exemplos de emoções que o Yoga propõe que os praticantes cultivem:
nirodha – qualidade de foco absoluto, de concentração total, plena e pacífica.
abhyāsa – disciplina, prática
vairāgya – ausência de paixão, desapego
satkāra – ação positiva, esforço com receptividade, hospitalidade
ādara – respeito, consideração
śraddhā – confiança, convicção
vīrya – vigor, coragem, força interior
smṛti – lembrança, comprometimento, foco no objetivo
praṇidhāna – aceitação profunda e inteligente
maitrī – amizade, amor
karuṇā – compaixão, benevolência
muditā – alegria, felicidade
upekṣānāṃ – desprendimento bondoso, indiferença positiva
svādhyāya – estudo de si
viveka – discernimento, lucidez
ahiṃsā – não violência
satya – veracidade, alinhamento entre fala, ação e pensamento
asteya – honestidade, integridade
brahmacharya – moderação nos desejos dos sentidos
aparigraha – ausência de avidez
Há ainda muitos outros.
Toda a psicologia do yoga se constrói em uma direção muito específica: a busca pela felicidade. Não o prazer temporário da conquista de um objeto de desejo, algo muito mais profundo e duradouro, sem negligências, fantasias ou enganos, muito pelo contrário, com muita atenção e cuidado a tudo o que pode e não pode ser percebido na mente.
É interessante notar que Yoga é uma disciplina de autoconhecimento bastante positiva e também muito pragmática ao propor que a felicidade e o bem estar só poderão vir de um mergulho na realidade, não de um distanciamento dela. A espiritualidade não está em outro lugar, ela é a própria vida cotidiana.
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