Yoga, ecologia, você e eu
Os carros autônomos dominarão o mercado em até 20 anos, mas o argumento mais forte para sua popularização é para que as pessoas tenham mais tempo para produzir enquanto o carro anda sozinho, ao invés de ficarem presas no trânsito em um tempo ocioso, onde não se produz nada.
Nunca produzimos tanto alimento, mas a intenção é simplesmente atender o mercado, não as pessoas. Não se engane pois o mercado e as pessoas são coisas diferentes. Os alimentos são cada vez mais pobres em nutrientes e quando temos uma super safra, são descartados para que não percam valor de mercado.
Trocamos de celular e carro a cada ano e os eletrônicos e eletrodomésticos estragam cada vez mais rápido.
As escolas focam no mercado, não no desenvolvimento humano. Temos que estudar mais para produzir mais, não para nos relacionarmos melhor. Nosso foco é o mercado desde os 5 anos de idade. A alfabetização acontece cada vez mais cedo, fazemos aulas de artes, esportes, e outras atividades desde muito cedo sem tempo e espaço para aprofundarmos qualquer relacionamento com nossos professores, atividades e amigos.
Na medicina, cada paciente é um número, uma entidade, um ser amorfo com algo que precisa ser consertado. Em nome da ciência a empatia foi abolida. Em nome de exames com equipamentos que parecem saídos de filmes de ficção científica, abolimos o olhar olho no olho, abolimos o toque.
Uma área do tamanho de dois campos de futebol é desmatada no Brasil por minuto, temos ilhas de lixo e plástico com quilômetros de diâmetro flutuando nos oceanos e nossos rios estão morrendo.
Atualmente a mata atlântica tem 3% do tamanho que tinha em 1500 e muitos adultos nunca viram uma vaca, uma cobra ou um sapo.
Em toda estação de chuvas intensas, pessoas perdem suas casas e suas vidas por conta das enchentes, outros milhares morrem em acidentes de trânsito e outros de fome mesmo. Pura e simplesmente pelo descaso das autoridades, não por falta de dinheiro.
Designers têm criado cada vez mais móveis “inteligentes” como aqueles onde uma cama vira uma estante de livros e um sofá. Mas não é somente pela engenhosidade, mas sim por uma demanda para que os móveis caibam em apartamentos cada vez menores construídos com materiais de última qualidade empilhando pessoas em cubículos absurdos.
O entretenimento de massas tem se tornado cada vez mais raso, simples e repetitivo de forma que os filmes e as músicas são todas iguais, como sedativos que não oferecem nenhum tipo de desafio de interpretação ou compreensão, simplesmente emoções de um nível muito básico, fundamental.
Religiões que pregam apenas o sucesso financeiro e são pautadas pelo preconceito, exclusão, ganância e egoísmo têm crescido espantosamente rápido.
Os políticos e a mídia continuam a nos enganar para nos extorquir. Cada vez trabalhamos mais e a cada dia ficamos mais doentes por isso. A ganância deles não conhece limites.
O abismo econômico entre os mais ricos e os mais pobres aumenta a cada ano, o 1% dono do mundo está cada vez mais cínico e rico e não parecem se importar minimamente com toda a espécie humana.
Já passamos por diversos períodos de caos no mundo com a diferença de que agora temos um acesso incrível à informação , porém nunca passamos por um momento tão dramático na iminência de criarmos um planeta caótico para essa geração que está nascendo e para todos nós que ainda estamos por aqui.
Precisamos nos abrir cada vez mais para as transformações que estamos causando no mundo e intensificarmos o processo de reflexão sobre a realidade que estamos criando.
É nesse contexto que acredito ser importantíssimo o processo de amadurecimento através do yoga. Olhar para o mundo com as lentes do yoga é olhar cada vez mais para a importância do nosso papel como agentes co-criadores e transformadores da realidade.
O conceito Yoga é traduzido de muitas formas para nossa cultura ocidental e quem acredito que mais conseguiu entender como vivemos foi o professor T. K. V. Desikachar. Ele disse:
“Yoga é relacionamento.”
Nos relacionamos com diferentes aspectos de nós mesmos, com nossa história, com o mundo ao nosso redor e todos os seres que o habitam. Nossas ações surgem de um movimento interno e causam interferências no mundo, alteram a realidade ao nosso redor e nossas próprias experiências internas. Por considerar esse raio amplamente abrangente de experiências o yoga nos oferece um olhar ecológico que nos leve a entender e refletir como podemos encontrar diferentes formas de equilíbrio para que cada relacionamento se dê de maneira saudável e que caminhe sempre em direção a um maior desenvolvimento interno e que novas relações sejam construídas a partir de mais sabedoria e maturidade.
Quando digo que o yoga oferece um olhar ecológico, vou no sentido profundo da palavra que diz que ecologia é a ciência que estuda as relações dos seres vivos entre si ou com o meio orgânico ou inorgânico no qual vivem. E também o estudo das relações recíprocas entre o homem e seu meio moral, social, econômico. Ou seja, a forma como nos relacionamos com o mundo. Lembra do que disse Desikachar?
Nosso corpo é nosso meio mais evidente de nos relacionarmos com nós mesmos, porém o corpo está inserido dentro de um contexto maior e se relaciona também com o mundo. Aqui já podemos encontrar a primeira dificuldade: aceitar, conhecer e entender nosso próprio corpo e as mudanças a que ele está sujeito frente às demandas externas, como sabemos, não é simples. Muitos de nós passamos uma vida inteira em guerra contra o próprio corpo. Há uma quantidade enorme de produtos, exercícios, roupas, alimentos, maquiagens, livros, profissões, programas de tv e internet focados somente no corpo e no relacionamento com ele. Imagine o tamanho da energia, de esforço e atenção que uma pessoa pode empenhar, e tirar de outras áreas dentro processo ecológico de si mesmo, de autoconhecimento, por conta dessa batalha. O corpo não deve ser o único foco, mas também não deve ser negligenciado – deve ser cuidado nutrido e protegido adequadamente.
E quanto a todas as nossas outras esferas de experiência?
O mesmo se dá com a respiração, as emoções, pensamentos, relações familiares, amizade, trabalho, natureza, política, no trânsito, espiritualidade, religiosidade, estudos e por aí vai.
Nesse processo, precisamos manter um certo tipo de atenção que permita cuidar de todos esses aspectos de forma saudável, atenta e de maneira a não negligenciar outras. Na medida em que aumentamos nossas reflexões sobre nós mesmos, aumentamos nosso potencial de reflexão sobre o mundo, sobre o outro e sobre a abrangência da própria individualidade.
Somos guiados por nossos desejos e aversões. Civilizações inteiras são erguidas e destruídas por esse par de opostos e por eles vivemos uma vida de extremos onde somos levados de um lado ao outro sem sabermos ao certo o motivo, hora desejando algumas coisas, hora nos afastando de outras. Por anos amei tal pessoa, agora não suporto ouvir seu nome. Desejos e aversões moldam a individualidade e na busca por mantê-la, tomados por inseguranças de todos os tipos; lutamos. Assim nos relacionamos com os tópicos no começo desse texto.
O yoga nos propõe um caminho que vai além desse círculo de confusões. Nos propõe que reconheçamos antes de mais nada que estamos todos mergulhados nessa confusão sobre quem somos, mas que por outro lado temos a possibilidade de alimentar um certo tipo de vitalidade que nos permite construir mais lucidez sobre nossa realidade individual.
Se procurarmos entender o mundo e a nós mesmos somente balizados por nossos apegos e aversões, todas as conclusões às quais chegarmos serão limitadas por aquilo que nos faz bem e o que nos faz mal, sem nenhum processo aprofundado de reflexão. Quando cada um de nós vai por esse caminho, construímos o mundo que temos agora, pautado pelo forte individualismo e egocentrismo. Eu consumo o quanto quiser, independente dos danos a natureza e as pessoas que deram suas vidas para atender meus desejos. Protejo a mim e a aqueles que quero bem sem me preocupar com o outro.
Mesmo se desconsiderássemos completamente o mundo ao redor de cada indivíduo, considerando somente sua realidade interna, ainda assim esse comportamento levaria ao sofrimento em discussões familiares, desavenças no trabalho, brigas no trânsito e… bom, você sabe muito bem do que estou falando.
Vamos imaginar alguém com muito dinheiro a ponto de essa não ser uma das principais preocupações de sua vida. Compra o que desejar, viaja para onde quiser. Podemos afirmar que essa pessoa não sofrerá? Obviamente que não. Por exemplo, pela simples facilidade em ter o que quiser, sofrerá. Os objetos de desejo facilmente perderão significado, as viagens não terão um grande apelo e essa pessoa terá grandes chances de não se sentir completa ou sem um objetivo a perseguir.
Essa confusão toda se dá ao não entendermos claramente o que somos. A essa confusão o yoga chama de avidyā, ou a ignorância sobre si-mesmo. Por não sabermos claramente quem somos, vamos nos identificando com coisas externas a nós, como as coisas mudam e como nós mudamos constantemente, sofremos, afinal, as coisas que desejo acabam, da mesma forma, as coisas que não desejo que aconteçam, podem acontecer e o simples fato de temermos que aconteçam, causa angústia.
Tendo isso claro, é bastante óbvio que todos buscamos a felicidade de alguma forma. Seja através dessa relação com a instabilidade do mundo, seja através de uma busca que não sabemos bem qual é. E porque buscamos a felicidade? Pelo fato objetivo de que ela por si só já basta. Se queremos um carro novo, queremos para sermos mais felizes, se queremos uma casa melhor a queremos para sermos mais felizes, se queremos um trabalho melhor, o queremos para sermos mais felizes e assim vai com roupas, decoração para casa, estudo, relacionamentos, filhos… Mas como nos relacionarmos com essa felicidade temporária, sazonal, obtida através das conquistas da vida? Primeiro é preciso termos clareza de que elas são importantes e não há mal algum em serem buscadas se soubermos que toda a felicidade conquistada através do relacionamento com a simples realidade de nossos desejos terminará, se extinguirá.
Temos uma certa clareza disso. Depois dos 30, 40, 50 anos percebemos que obtivemos algumas conquistas, muitas frustrações, temos uma história repleta de buracos e ferimentos ainda abertos e que mesmo tendo vivido, tendo dado tempo ao tempo, muitas feridas não cicatrizam continuam doendo. Temos uma vaga noção que talvez exista algo mais na vida que precisa ser descoberto, algo mais que precisa ser vivido, mas não sabemos com clareza o que é.
O yoga oferece a possibilidade de encontrarmos um outro tipo de felicidade, um outro tipo de satisfação, de contentamento, de integridade, de sinceridade com si mesmo, de satisfação dos desejos do próprio corpo. Isso é chamado ānanda, ou a satisfação do desejo do conhecimento profundo de si mesmo. E não é tão difícil de entender isso.
Essa satisfação vem de uma clareza crescente de quem somos e do que é a realidade. Vem de entendermos até onde a realidade pode nos satisfazer e até onde pode ir nosso relacionamento com o outro. Vem de entender que, assim como tudo muda o outro muda, nós mudamos. E nessa mudança, a única forma de entendermos melhor os mistérios dessas transformações é que nós mesmos não sejamos um mistério para nós mesmos. Que possamos nos entender, nos conhecer um pouco melhor para que possamos nos oferecer ao mundo como indivíduos um pouco mais lúcidos, frente a confusão reinante.
Aos poucos vamos então removendo tudo aquilo que nos impede de ter uma reflexão mais clara à medida que nos dedicamos mais e mais a conhecermos os componentes do yoga e então conquistamos um pouco mais de sabedoria que poderá nos ajudar a entendermos quem realmente somos, diferente daquilo que acreditamos ser.
Refletir sobre yoga e ecologia portanto tem muito mais a ver com a forma como construímos relacionamento saudáveis e repletos de vitalidade e sensibilidade do que simplesmente não comer carne ou separar o lixo.
Oi Ricardo,
Gostei muito desta visão ampla do yoga e ecologia.
Vou compartilhar !
Obrigada.
Esther